Tuesday, October 10, 2006

cristais.

Chegou sorrateira, sem a mínima denúncia de sua presença inquestionável. Nada poderia atenuar seu efeito devastador. Chegou ensurdecedora, quase enlouquecedoura, como graves notas tristes em uma descoordenada melodia que ela ouvira em tempos passados. As janelas a bater foram o alarme final - não havia mais o que fazer. Ela se sobressaltou, mas não da forma comum. Era fascínio, deslumbramento, encanto o que a fazia seguir, medo, nunca. A chuva de pedra do lado de fora a levava a pensar. Por trás dos vidros, não partidos por motivos desconhecidos, o que acontecia? Ela sabia, sabia o que carregava cada cristal, cada gota, cada lágrima. Ao enxergar brancas avenidas geladas através de suas frágeis janelas, sabia que fora a inconstância de sua (in)consciência - ora fria, ora quente, ora atormentada, ora tranqüila demais - que levara a tudo aquilo. Foram suas contradições as responsáveis por, em condições extremas de temperatura e pressão, transformar o que seria chuva fina, no máximo tempestade passageira, em invencível tempestade de granizo. Tempestade tão brutal, capaz de varrer até mesmo os pequenos restos bons que, sabendo procurar, ela poderia encontrar espalhados, estilhaçados.
Manhã. O branco bonito dos fragmentos de gelo que cobriam as ruas desaparecera. Em seu lugar, um verde desbotado que cheira a renovação tanto quanto a morte (coisas muito pouco diferentes, no final). Nada do clima de alívio que a Cidade esperava. Ao contrário, ficam as janelas trincadas, as árvores desfolhadas, a terra revirada. Fica um ar de tarefa inacabada, o medo de que tudo se repita. Fica a poeira nas esquinas.

[ na falta de tempo-paciência-inspiração para escrever algo que preste (ou quase), e inspirada pela corretíssima observação do panda ("o weblogger do terra é um cu mesmo"), resgato esse que talvez seja o meu-texto-meu-preferido-de-todos-os-tempos. ]